CAPÍTULO UM
Era uma madrugada de fevereiro quando a insônia
não estava mais permitindo que eu dormisse. Olhei para a tela do celular que
indicava três e trinta e sete da madrugada, duas chamadas perdidas e uma
mensagem.
“Parabéns, linda da tia! Amo você.
Dani.
00h06min”
Era oficialmente meu
aniversário.
Nunca me entusiasmei com
aniversários, muito menos com festas de
aniversário. (a) Sempre achei tolice uma pessoa comemorar por estar ficando
velha (b) Se é meu aniversário, eu que tenho que ganhar presentes, e não
oferecer comida grátis pra um bando de gente que não tem o que fazer.
Decidi calçar umas pantufas
velhas do lado da cama e ir olhar pela janela alguns jovens voltando dos blocos
de carnavais que estavam acontecendo por toda cidade. A rua estava cheia. Havia
um grupo de bêbados dizendo frases sem sentido em frente a uma igreja no final
da rua, e o pastor negro e alto tentava pacientemente afastar o grupo de
baderneiros. Num grupo mais à frente, havia jovens com, no máximo, 20 anos,
várias tatuagens e piercings pelo corpo e um cheiro tão forte de bebida
alcoólica misturado com cigarros ou algo do tipo que pude sentir do segundo
andar da casa. Avistei duas meninas que não aparentavam ter mais que 15 anos, ambas
com cabelos azuis, uma com uma garrafa de vodca na mão e outra com um maço de
cigarros. Questionei-me o porquê não ser como eles. Ter uma vida interessante, beber
e fumar na hora que eu quiser e sair à noite sem hora pra voltar. Olhando
assim, de longe, eles pareciam ser tão legais. Sem regras, sem responsabilidades,
sem compromissos, nada. Sempre fui o patinho feio na roda dos amigos —
isso quando eu tinha amigos — e nunca consegui me associar nos grupinhos de
pessoas maneiras como aquele grupo. Talvez
por nunca ter sido sociável. Talvez por nunca ter sido notável. Talvez por
nunca ter sido amável.
O pastor negro e alto
continuava tentando afastar o grupo de baderneiros.
Deixei de me afogar em pensamentos
que nunca iriam me levar
a nada enquanto ainda olhava pela janela, afinal,
era meu aniversário de dezoito anos. Percebi que sons do qual eu não estava
conseguindo identificar vinham do primeiro andar. Andei lentamente até a porta
e fiz silêncio absoluto no quarto para tentar identificar aqueles sons.
Eram vozes abafadas e
estranhas.
— Estranho — sussurrei.
Àquela altura eu só conseguia imaginar o pior, resultado de um sequestro que
sofri quando tinha nove anos. Assassinos, assaltantes ou sei lá o que poderiam
ter invadido a minha casa. Nunca fui uma pessoa muito corajosa, então decidi
pegar o taco de Baseball velho e imprestável que ganhei de natal da tia Alicia
que estava de baixo da cama há séculos — Não é mais tão imprestável —
pensei.
* * *
Desci as escadas atentamente e
fazendo o mínimo de barulho possível quando percebi que a cada degrau que eu
descia a sala de estar fazia mais silêncio. Eles
sentiram a minha presença. Decidi descalçar as pantufas para evitar barulho
e segurei o taco de Baseball com as duas mãos como se fosse rebater uma bola
como toda a força.
Parei no primeiro degrau da
escada.
Fez-se um silêncio
perturbador.
Numa fração de segundo, tive
a maldita sensação de estar sendo vigiada e logo em seguida vi a luz da sala de
jantar se acender.
— SURPRESA! — Disseram todos
os que estavam ali. Soltei o taco de Baseball no chão e levei minha mão aos
olhos, não estava conseguindo enxergar normalmente com a claridade repentina.
— Que merda
é essa?— senti meu rosto ficar completamente vermelho
quando percebi que era uma festa surpresa. Olhei para todos em volta e em
seguida olhei para mim. Eu estava vestindo a parte de cima de um pijama azul
bebê com bolinhas brancas e um short pequeno rasgado que eu tinha desde uns catorze
anos.
— Fique calma, querida — Disse
meu pai colocando uma tiara da Minnie em minha cabeça e me abraçando. Sua pele
envelhecida e várias olheiras ao redor dos olhos são resultado de vários anos
de dedicação à pediatria, cuja profissão tenho ódio mortal. — Hoje
é o seu dia!
— Tire a mão de mim! — Soltei um
grito ao perceber que aquele homem estava
encostando-se a mim.
Todos ficaram em silêncio olhando
fixamente para mim quando percebi que eles não sabiam o motivo daquilo, a não
ser a tia Dani.
— Deixem de bobeira — A tia Daniele
falou olhando para todos ali. Ela era uma mulher de 30 anos, mas se vestia como
uma garotinha de 15. Seus cabelos longos e loiros vivem numa competição com
seus seios siliconados para saber quem chama mais atenção. Seus olhos verdes
ganham ainda mais destaque com seu batom vermelho like a bitch. — Hoje é o seu
dia! — E então olhou pra mim.
* * *
Na Inacreditável Tolice de Comemorar
Estar Ficando Velho — ou só festa
de aniversário — estava o tio Robert com a sua ruiva e megafofa
esposa Alicia, seus filhos gêmeos Martin e Peter hiperativos que puxaram os
cabelos ruivos da mãe, três “amigas” do ensino médio e uns cinco vizinhos.
O tio Robert sempre foi o
tipo de tio preferido, apesar de ter se afastado da família pra ir morar com
Alicia na zona oeste da cidade. Suas blusas nunca foram grandes o suficiente
para seus musculosos braços e seus olhos negros eram um tanto provocantes com a sua cabeça raspada.
Tá, confesso. Tenho um amor platônico por ele. Afinal, que garota que nunca
teve um relacionamento sério não teria uma quedinha por um homem daquele? Tentei disfarçar ao perceber que já estava a algum
tempo olhando fixamente para seus braços musculosos.
A festa já estava ficando próxima do
fim quando ouvimos um barulho de sirene bem próximo. Era a polícia.
— Foram os malditos Wilson do final da rua — Minha
mãe abriu a porta com um olhar assustado antes que sequer pudéssemos dizer algo
— Ligaram para a polícia por reclamações do som
alto — explicou.
Todos saíram de casa enquanto
eu fiquei apenas observando através da imensa janela da sala. Apesar dos dias quentes e abafados que predominam em boa
parte do ano no Rio de Janeiro, as árvores floridas estavam se aperfeiçoando
junto ao nascer o sol com uma temperatura agradável. Percebi o quanto amava a
primavera do Rio de Janeiro, principalmente pelo cheiro de margaridas no ar.
— Terra chamando Sophie — Ouvi
uma voz de fundo. Era a tia Dani.
— Ah, oi tia Dani — Dei um sorriso gengivital pra ela. Chamava-o
assim por boa parte do meu sorriso ter somente gengiva, algo que me incomodava.
— O que dizia?
— Sobre a “tia” eu não sei, mas sei sobre a tal de Dani.
— Ela disse num tom de reprovação — Enquanto
a Dani for jovem o suficiente para conseg...
— Para conseguir um namorado, nunca a chame de tia
e blá blá blá — Completei revirando os olhos — Tá
bom, DANI, o que você dizia?
— Perguntei se você não vai lá fora.
— Não, to bem aqui, acho que eles vão conseguir
resolver sozinhos — Respondi olhando através da janela.
— Eles? Resolver? Sozinhos? — Ela
disse sarcasticamente enquanto fazia um decote em sua blusa — Você
ainda não viu nada. — E NÃO ME CHAME DE TIA — Ela
gritou ao fechar a porta.
Eu ri.
O tio Robert segurava a
Sra. Moraes enquanto meu pai segurava minha mãe, para evitar que as duas saíssem no tapa. A Alicia estava
correndo atrás dos seus gêmeos hiperativos em volta do quintal — como
sempre — E a Dani... Ah, estava sendo A Dani. Seus seios siliconados pareciam que iriam explodir em meio a
tanto decote, no qual os policiais não conseguiam parar de olhar.
Talvez A Inacreditável
Tolice de Comemorar Estar Ficando Velho fosse legal.
Subi correndo as escadas quando
encontrei a pequena miniatura de gente — Ou só Breno, meu irmão.
— Não era pra você estar dormindo, mocinho? — Perguntei
com as duas mãos na cintura se fazendo de durona.
Antes que ele sequer
pudesse responder, colocou pra fora tudo o que havia comido escondido enquanto
todos estavam na sala. E pior, vomitou em mim.
Percebi que ele não havia
vomitado à toa. Ele vomitou por comer bolo de chocolate. Ele era alérgico.
* * *
— Caramba, Breno, você sabe do risco que correu por
ter comido aquilo? — Eu dava sermões atrás de sermões enquanto dava
banho nele — E se você não tivesse vomitado? Você poderia ter
parado no hospital, sabia?
Seu cabelo louro de tamanho
médio sempre fica imóvel em meio ao gel.
É quase como uma versão masculina — E em miniatura — da
Dani, pois também pegou os olhos
verdes da tia. Achei melhor parar de falar, era uma criança de apenas seis
anos.
— Todos os meus coleguinhas dizem que é bom — Ele
falou quase que como um sussurro olhando pra mim — Eu... Eu
só queria ser maneiro como eles.
— Ah, Breno — Eu o abracei
com força consequentemente molhando minha blusa — Eu sei
como você se sente — E então o afastei ajoelhada, olhando no fundo dos
seus olhos — Prometa pra mim que você não vai fazer coisas
assim para ser igual a seus amigos, ok? Você é único e eu te amo você comendo
chocolate ou não.
— Eu prometo — ele disse em
seguida dando um sorriso banguela.
Naquele momento eu havia
percebido que o que eu tinha dito pra Brian serviria pra mim também. — Acho
que sou tão inocente quanto você — sussurrei.
* * *
Desci as escadas com o
Breno nas costas me fazendo de cavalinho quando todos que estavam lá fora
voltaram pra casa. O tio Robert sentou no sofá de frente para a TV levando suas
mãos ao rosto, pensativo. Minha mãe estava aparentemente irritada com ele.
— Era pra você ter me deixado bater naquela mulher — ela berrava com o tio Robert quase o enforcando de raiva. Seus cabelos negros iam até os ombros dando vida ao rosto já envelhecido.
— Era pra você ter me deixado bater naquela mulher — ela berrava com o tio Robert quase o enforcando de raiva. Seus cabelos negros iam até os ombros dando vida ao rosto já envelhecido.
— Como foram lá fora? — Perguntei
enquanto colocava Brian no chão.
— Ótimo — A Dani falou
com um sorriso estampado no rosto — Eu te falei que
iria conseguir resolver sozinha.
— Só se resolveu um encontro com o tal major Vieira, porque resolver o problema que é bom... — O
tio Robert falou arqueando as sobrancelhas dando um sorriso pra mim. Tentei desviar
o olhar dando um sorriso gengivital.
Todos riram enquanto Dani
cruzou os braços aparentando frustração.